Artigo/Renata Amaral: A crise global de alimentos no contexto do comércio multilateral

Artigo/Renata Amaral: A crise global de alimentos no contexto do comércio multilateral

Por Renata Amaral*

Washington, 15/09/2022 – Que o mundo vive uma franca crise de segurança alimentar já não é mais novidade. Dentre os impactos da guerra na Ucrânia em 2022, alguns já são bem conhecidos: crise de abastecimento
de gás, aumento nos preços de combustíveis, cadeias de suprimentos interrompidas e problemas graves de (in)segurança alimentar em muitos países.

Com relação aos alimentos os problemas vêm de antes. Bem verdade, desde 2020 se verifica, em nível global, a escalada de preços dos alimentos, motivada pela combinação de fatores climáticos, elevação da demanda e disrupção em elos de cadeias produtivas agroalimentares em função da pandemia. Esse cenário foi significativamente agravado pelo conflito na região do Mar Negro envolvendo países que são importantes produtores e exportadores de trigo, milho e óleo de girassol, além de fertilizantes e outros insumos agrícolas.

A invasão protagonizada pela Rússia agravou severamente as preocupações com segurança alimentar no planeta. Quando se fala em segurança alimentar se está falando de disponibilidade, acesso, acessibilidade, utilização e estabilidade no fornecimento de alimentos. De acordo com a Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO), a guerra deixará 20% a 30% das terras agrícolas da Ucrânia sem plantio ou sem colheita para a temporada de 2022. Os grãos já colhidos ficam (ou ficaram) presos por semanas porque os portos da Ucrânia foram bloqueados pela Rússia.

A escassez global de alimentos está empurrando os preços dos alimentos para níveis recordes, com implicações econômicas e políticas para os países desenvolvidos e uma ameaça de fome e endividamento no mundo emergente. Os preços dos alimentos explodiram, quase 30% no ano em abril, de acordo com o índice de preços de alimentos da FAO. É uma crise sentida de forma mais aguda no mundo em desenvolvimento.

Impacto em países em desenvolvimento e desenvolvidos/b>

Note-se que as compras de alimentos representam pelo menos metade dos gastos totais das famílias em países de baixa renda, e muitos governos de mercados emergentes fornecem subsídios alimentares. Isso está ficando mais difícil de manter, já que os custos crescentes dos empréstimos limitam o espaço fiscal e os preços dos alimentos disparam. De acordo com o Banco Mundial, 10 milhões de pessoas são empurradas para a pobreza extrema em todo o mundo para cada ponto porcentual de aumento nos preços dos alimentos.

O tema também é preocupante para países desenvolvidos. A inflação liderada pelos preços de alimentos e energia é uma questão de campanha dos EUA que pode levar a uma mudança em quem controla o Congresso norte-americano neste segundo semestre. No Reino Unido, quase 10 milhões de britânicos reduziram o consumo de alimentos ou perderam refeições no primeiro semestre.

Agenda da Organização Mundial do Comércio cobre apenas parte do problema

A Organização Mundial do Comércio (OMC) trata do comércio internacional e de política comercial. Dos desafios que estão fora do escopo da agricultura sob o guarda-chuva da Organização incluem a necessidade de aumentar a produtividade, melhorar o acesso à água ou lidar com as mudanças climáticas.

Há discussão das atuais disciplinas da OMC sobre restrições à exportação, sobre a manutenção das cadeias de suprimentos abertas e a garantia de um movimento fluído, sobre como evitar reações desestabilizadoras, melhorar a transparência para que as restrições à exportação e outras políticas possam ser melhor monitoradas, bem como o tema de estoques de alimentos.

Em junho último, em meio a uma das maiores crises alimentares global, com preços do trigo 60% mais altos em junho de 2022 do que em janeiro de 2021, houve pressão para que a OMC apresentasse um resultado significativo em comércio e segurança alimentar no âmbito da sua 12 Conferência Ministerial (MC12). Os 164 membros da Organização concordaram que o comércio, juntamente com a produção doméstica, desempenha um papel vital na melhoria da segurança alimentar em todas as suas dimensões e na melhoria da nutrição ao redor do planeta.

Nesse sentido, os governos dos membros comprometeram-se a tomar medidas concretas para facilitar o comércio e melhorar o funcionamento e a resiliência de longo prazo dos mercados globais de alimentos e agricultura, incluindo cereais, fertilizantes e outros insumos de produção agrícola. O documento acordado informa que será dada especial atenção às necessidades específicas e circunstâncias dos membros dos países em desenvolvimento, especialmente os menos desenvolvidos e países em desenvolvimento importadores líquidos de alimentos.

Ademais, no resultado das negociações, os membros ressaltaram a necessidade de escoamento do comércio agroalimentar e reafirmaram a importância de não impor proibições ou restrições de exportação de forma inconsistente com dispositivos relevantes do arcabouço jurídico da OMC. Na mesma linha, os negociadores decidiram trabalhar num documento para garantir que quaisquer medidas de emergência introduzidas para abordar a segurança alimentar devem ter o foco de minimizar as distorções comerciais tanto quanto possível; ser temporárias, direcionadas e transparentes, além de serem notificadas e implementadas de acordo com as regras da OMC.

Finalmente, os membros reconheceram que estoques adequados de alimentos podem contribuir para a realização das necessidades domésticas de alguns países, para cumprir com objetivos de segurança alimentar e para incentivar os membros com estoques excedentes disponíveis a liberá-los nos mercados internacionais de acordo com as regras da OMC. Os membros também concordaram em não proibir ou restringir as exportações de alimentos adquiridos pelo Programa Mundial de Alimentos para fins humanitários. Isso não substitui as exceções existentes nos acordos da OMC para medidas tomadas por motivos de segurança alimentar doméstica.

O que faltou na MC12: agricultura

Esses compromissos firmados no âmbito da MC12 são importantes porque vários países vêm adotando medidas altamente distorcivas – como restrições às exportações -, que já atingem cerca de 15% das calorias exportadas em alimentos e 20% dos fertilizantes comercializados globalmente, segundo levantamento do International Food Policy Research Institute (IFPRI).

Essa tendência deve agravar a questão dos altos preços em nível global, impedindo os ganhos de eficiências que seriam obtidos com a redução das barreiras tarifárias e não tarifárias ao comércio internacional.

No entanto, os compromissos em relação à segurança alimentar não tocaram em pelo menos um ponto fundamental relacionado aos temas de agricultura: apoio doméstico. Não houve resultado na agricultura. O apoio à agricultura é definido como o valor monetário anual das transferências brutas para a agricultura de consumidores e contribuintes decorrentes de políticas governamentais de apoio à agricultura, independentemente de seus objetivos e impactos econômicos.

De acordo com dados recentes da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), as políticas de apoio à agricultura em 54 países – incluindo os 38 da OCED – geraram US$ 720 bilhões por ano em transferências para a agricultura, o dobro do nível observado em 2000-02 em termos nominais. Em termos de apoio doméstico, como se pode imaginar, há grandes desigualdades nos direitos dos países (e, portanto, sua capacidade de distorcer mercados e prejudicar outros países) e preocupações mais recentes sobre distorções de mercado causadas por novos grandes exportadores entre economias emergentes. A maior parte do apoio fornecido tende a ser altamente distorcido, pode impactar frontalmente a questão da segurança alimentar, e foi deixado de fora pelos membros.

A agricultura é uma negociação mais complicada do que as que produziram resultados na conferência, talvez a mais complicada. É provável que, para chegar a acordos, os membros precisem fazer trade-offs, barganhar um conjunto de interesses contra outro que são muito mais sofisticados, o que não foi possível – ou não se quis mexer agora para não estragar os outros deliverables do chamado “Pacote de Genebra”.

Verdade seja dita, em que pese o sinal positivo que os membros deram no sentido de que OMC continua relevante e de que há desejo de continuarem caminhando juntos, ainda que a passos lentos, não houve entrega substantiva em agricultura – um dos temas mais áridos e mais urgentes a serem tratados no âmbito da Organização, e que pode desdobrar em problemas diretamente relacionadas a crise global de alimentos que enfrentamos hoje. Esse tema deve ser dos mais quentes a serem debatidos no fórum público da OMC que acontece em Genebra no final deste mês.

Renata Amaral é Consultora Sênior em Comércio Global e Doutora em Comércio Internacional. Está
baseada em Washington/DC e é Professora do Washington College of Law, da American University.
Escreve quinzenalmente para o BroadcastW

Broadcast+

Recommended Posts

No comment yet, add your voice below!


Add a Comment

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *