“Friendshoring” na tecnologia médica interessa ao Brasil e aos EUA

Artigo/Renata Amaral: “Friendshoring” na tecnologia médica interessa ao Brasil e aos EUA

*Publicado no Broadcast+/Agência Estado

*Por Renata Amaral, articulista quinzenal do Broadcast

No meu primeiro artigo para o Broadcast há duas semanas, falei sobre o recorrente discurso sobre “friendshoring” aqui nos Estados Unidos. Trata-se da ideia de que países amigos (ou aliados) devem negociar e compartilhar os benefícios do comércio para que não se dependa excessivamente do fornecimento de bens críticos dos países onde os EUA tem preocupações geopolíticas

Pois bem, na última sexta-feira, 22, no âmbito do Diálogo Comercial Brasil-EUA, este foi também tema central do painel com o setor privado organizado em Washington pela Amcham Brasil, em parceria com o Brazil-US Business Council e a Confederação Nacional da Indústria (CNI). Na mesa redonda entre os governos e empresas de diferentes setores dos dois países, as entidades fomentaram uma conversa sobre oportunidades de cooperação bilateral para aumentar a integração em cadeias de suprimentos.

Não há dúvidas de que o Brasil está em uma posição privilegiada na região nesse contexto de maior integração regional das cadeias de suprimentos entre países “amigos”. Não só o Brasil é uma economia forte e tem um mercado consumidor enorme, mas os governos mantêm uma boa relação técnica bilateral saudável ao longo da história – i.e. o Diálogo Comercial que aconteceu na semana passada foi estabelecido em 2006 com vistas a aumentar o comércio e o investimento mútuos. Ademais, de acordo com os dados do monitor de comércio bilateral da Amcham Brasil, as importações e exportações entre Brasil e EUA registraram números inéditos nos últimos meses, com alta de 43,2% no primeiro semestre deste ano e chegaram ao valor recorde de US$ 42,7 bilhões.

Setor de tecnologia em saúde
No contexto das iniciativas capitaneadas pelo governo norte-americano para que mais alternativas para o “friendshoring” entre as duas economias sejam exploradas, dentre todos os setores que participam ativamente do comércio e das discussões bilaterais, chamo atenção para o setor de saúde, e, mais especificamente, para o setor de tecnologia médico-hospitalar (que inclui qualquer instrumento, aparelho, implemento, máquina, aparelho, implante, reagente para uso in vitro, software etc.).

Pela importância que teve e tem na resposta à pandemia, o setor de dispositivos médicos ganhou destaque nas discussões envolvendo comércio internacional nos últimos anos. Comércio internacional e saúde pública são grandes temas para a próxima década em âmbito global. De acordo com um update publicado pela Organização Mundial do Comércio (OMC) neste mês de julho, as importações e exportações totais de produtos médicos foram avaliadas em US$ 2,028 bilhões em 2019 e cresceram para US$ 2.654 bilhões em 2021, com uma taxa de crescimento anual de 14,4%. Antes da pandemia, em 2019, o setor de produtos médicos representava 5,3% do comércio mundial total. Essa participação aumentou para 6,6% em 2020 e foi de 5,9% em 2021.

EUA e da Europa dominam o comércio global de produtos médicos e, para certos produtos menos intensivos em tecnologia, a região asiática também se destaca. No comércio bilateral Brasil-EUA, os EUA são o principal parceiro comercial do Brasil no setor de dispositivos médicos, tanto para importações quanto para exportações, com espaço para expansão.

Oportunidade
A despeito de meu ceticismo sobre ao incentivo generalizado de “friendshoring”, para este setor há, de fato, oportunidade para o crescimento da área de fabricação e serviços com vistas a uma cadeia de suprimentos de tecnologia médica mais diversificada e distribuída entre os dois parceiros comerciais. E ambos os países (e os pacientes) se beneficiariam com maior integração das cadeias de suprimentos do setor.

Para aprofundar uma conversa bilateral neste sentido, alguns desafios precisariam ser superados e, dentre eles, a questão regulatória – que também foi tema do Diálogo Comercial da última semana – salta aos olhos como um dos maiores problemas enfrentados para ampliação do comércio de dispositivos médicos. Para a cadeia de suprimentos desse setor, que normalmente é muito extensa e envolve uma grande quantidade de regulações, normas e certificações que precisam ser observadas, o uso de boas práticas regulatórias é prioridade zero.

Nas últimas décadas, à medida que os países reduziram significativamente barreiras clássicas ao comércio – como tarifas e quotas -, barreiras não tarifárias ao comércio cresceram exponencialmente. Dentre estas, as divergências de exigências regulatórias são hoje a principal razão de onerosidade e custos para transações comerciais internacionais. O exemplo do setor de tecnologia médico-hospitalar, no coração da crise causada pela covid-19, explicitou os problemas decorrentes de restrições ao comércio global causadas por divergências regulatórias ao longo da cadeia de produção.

Recentemente, às margens da Cúpula das Américas durante o mês de junho em Los Angeles, Brasil e EUA fizeram parte do grupo de 14 países do Hemisfério Ocidental que firmaram a Declaração de Boas Práticas Regulatórias anunciada pelo Escritório do Representante de Comércio dos EUA (USTR). Este é um excelente exemplo de maior colaboração regional em questões pragmáticas que importam para aos fabricantes e para aqueles que operaram cadeias de suprimentos. Tanto Brasil como EUA têm papéis de liderança a desempenhar regionalmente nesse sentido.

Protocolo com boas práticas regulatórias
Inclusive, Brasil e EUA acordaram um 2021 a extensão de um Protocolo (Protocolo ATEC) para incluir, entre outros temas, o anexo de boas práticas regulatórias. A codificação de processos, sistemas, ferramentas e métodos internacionalmente utilizados para garantir a qualidade, transparência e desenvolvimento inclusivo de regulações é um tema caro para o setor de tecnologia médica, mas também para outros setores com interesse em ampliação da integração de cadeias de suprimentos entre as duas economias.

A efetiva implementação e operacionalização dessas regras podem abrir espaço para tratar de outros temas espinhosos que afetam horizontalmente setores que comercializam bilateralmente. Também abre espaço para posicionar o Brasil e os EUA como parceiros comerciais com cadeias de suprimentos mais resilientes em todos os setores em que já há trocas comerciais – e será particularmente útil para o setor de tecnologia médica.

A despeito de todos os esforços norte-americanos de convencer o resto do mundo de que fazer comércio apenas com nações aliadas é uma boa ideia, essa não me parece uma alternativa prática (nem real) para os negócios em geral. No entanto, no detalhe, essa avaliação deve ser feita caso a caso. E particularmente para o setor privado de tecnologia médica e para os governos de EUA e Brasil, a ideia de uma maior integração com vistas a maior resiliência das cadeias de suprimento do setor de dispositivos médicos não só é possível, mas pode multiplicar benefícios para a saúde pública, para indústria e para pacientes da região.

*Renata Amaral é consultora sênior em Comércio Global e doutora em Comércio Internacional. Está baseada em Washington e é professora do Washington College of Law, da American University. Escreve quinzenalmente para o Broadcast.

Os artigos publicados no Broadcast expressam as opiniões e visões de seus autores.

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