Uma mulher no comando da OMC: oportunidade de mudanças pelas lentes de Ngozi Okonjo-Iweala

 

Originalmente publicado em: https://ilabrasilblog.wixsite.com/blog/post/uma-mulher-no-comando-da-omc-oportunidade-de-mudan%C3%A7as-pelas-lentes-de-ngozi-okonjo-iweala

Em uma decisão histórica para o sistema de comércio multilateral, Ngozi Okonjo-Iweala emerge como a primeira mulher, a primeira negra, a primeira representante africana e a primeira cidadã norte-americana a alcançar o mais alto posto da Organização Mundial do Comércio (OMC).

Com o anúncio do último dia 15 de fevereiro em Genebra, a decisão em favor de Ngozi só foi possível após a mudança de posição e o apoio público do governo norte-americano a sua candidatura – o governo norte-americano era o único a bloquear a sua nomeação em 2020, durante a administração de Donald Trump. Da declaração do Escritório do Representante de Comércio dos EUA (USTR, na sigla em inglês) importa ressaltar o destaque feito para o fato de que duas mulheres altamente qualificadas chegaram a fase final da seleção para a Diretoria Geral da OMC, algo sem precedentes. Com efeito, desde sua criação, em 1995, a OMC teve apenas homens, e nunca um representante africano, no posto de Diretor Geral.

Não é a primeira vez que Ngozi rompe “tetos de vidro” em sua trajetória profissional. Ela foi a primeira mulher a ocupar os cargos de ministra das Relações Exteriores e de Finanças, este último por duas vezes, na Nigéria. Durante os seus 25 anos de Banco Mundial, chegou ao segundo mais alto posto como economista na instituição, onde atuou como diretora-gerente em Washington-DC. Ela também tem uma formação sofisticada, em Harvard e no MIT.

Em toda crise há oportunidades

A relevância da OMC vem sendo colocada em xeque há alguns anos e a eleição da candidata nigeriana parece sinalizar o desejo de seus membros por mudanças. Tensões comerciais entre EUA-China, o recrudescimento do protecionismo global e o aumento unilateral de barreiras comerciais (tarifárias e não-tarifárias), além do bloqueio do Órgão de Apelação e as possíveis entregas da Conferência Ministerial de 2021 são desafios complexos que estão na pauta da nova liderança, e que precisarão ser enfrentados com firmeza.

Efetivamente, a OMC enfrenta uma série de bloqueios que se mostraram resistentes a pequenas mudanças e iniciativas. E claro, os problemas enfrentados pela Organização foram agravados com a pandemia. Nesse sentido, e ainda que a Covid-19 seja sobretudo um assunto para os governos nacionais, a OMC tem um papel fundamental pois a pandemia não terminará em nenhum lugar até que termine em todos os lugares, e o comércio será fundamental para derrotá-la globalmente. Assim, parece que este ano oferece uma excelente oportunidade para demonstrar o papel central que o comércio pode desempenhar na abordagem dos problemas mais urgentes do mundo, mantendo as rotas comerciais abertas para combater a pandemia global e acelerar a recuperação econômica global.

Ngozi tem plena consciência de que a OMC pode exercer um papel único no combate a pandemia. Vale lembrar que a nova Diretora Geral era, até recentemente, a Presidente do Board da Global Alliance for Vaccines and Immunization(GAVI, na sigla em inglês)a “Aliança da Vacina”. Isso importa porque Ngozi traz para o universo da OMC sua expertise em relação a temas prioritários para o combate a pandemia. Inclusive, nos primeiros dias após o anúncio da sua confirmação, ela foi enfática sobre a necessidade de que os países abandonem as restrições à exportação de vacinas e suprimentos médicos necessários para combater a pandemia será uma de suas principais prioridades.

A demais, a fim de dar voz a novos atores e abrir espaço para decisões inovadoras sobre os rumos do sistema multilateral, a Diretora Geral que assume o cargo no próximo dia 01 de março poderá exercer um papel importante em tornar as decisões da OMC mais inclusivas. Uma das mais antigas críticas ao funcionamento da OMC, feita sobretudo por países em desenvolvimento e de menor desenvolvimento relativo, é a de que as decisões são frequentemente tomadas por poucos players poderosos – ainda que, na regra, devam ser por consenso -, e apresentadas aos demais membros como fato consumado.

Cross-cutting issues

Dentre os assuntos que devem dominar o debate internacional, e dos quais a OMC precisará tratar, estão meio-ambiente e cláusulas trabalhistas em acordos de comércio. Esses são temas que seguem dissociados das pautas da OMC, mas a verdade é que a Organização precisará tratar deles a fim de que permaneça relevante nos próximos anos. A OMC precisa também deixar a sua marca na regulação do comércio digital. A nova Diretora Geral pode capitalizar em cima das negociações de e-commerce que já vem acontecendo há algum tempo, e liderar o movimento de regulação deste comércio.

Paralelamente, espera-se também de Ngozi uma maior ênfase para as discussões sobre mulheres e comércio internacional, assunto que a Organização já tem tratado, mas que precisa evoluir do patamar de boas intenções para que sejam discussões mais profundas sobre implementação e enforcement de disposições de gênero. A Declaração de Buenos Aires sobre Comércio e Empoderamento Econômico das Mulheres de 2017 foi um marco. No entanto, foi apenas em setembro de 2020 que os membros da OMC estabeleceram um Grupo de Trabalho Informal para avançar na implementação. Como já se escreveu extensivamente, o comércio internacional, e em particular a abertura ao comércio, contribuiu imensamente para o empoderamento econômico das mulheres e para a melhoria da qualidade de vida de suas famílias, educação, saúde. No entanto, também há evidências substanciais de que muito mais precisa ser feito, e a liderança de Ngozi será fundamental nesse aspecto.

Ngozi foi a melhor escolha para este momento

Mulher, negra, africana, Ngozi Okonjo-Iweala traz muito simbolismo com a sua confirmação. É uma profissional extremamente experiente, uma expert que transita há muitos anos entre os organismos multilaterais e que tem aptidão diplomática e política para desempenhar com primor as principais atividades da sua nova função: direcionar a agenda das negociações da OMC para os temas prioritários, facilitar o entendimento entre os membros e fazer a interlocução com a mídia. Não será fácil, há muitos desafios pela frente, muitos temas e insatisfações de anos que precisam ser endereçadas, mas talvez o momento de pandemia e suas consequências econômicas podem ser uma oportunidade para a nova Diretora Geral relembrar a todos sobre a relevância do sistema de comércio mundial.

 

Renata Amara

Doutora em Direito do Comércio Internacional. Professora Adjunta na American University Washington College of Law e Fundadora da rede Women Inside Trade.

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